Jerusa de Carvalho Pires Ferreira
Veredas, caminhos, encontros e o grito do espanta-boiada gravado no celular
por Lucila Meirelles e Norma Freire
ALGUMAS SEQUÊNCIAS
Jerusa de Carvalho Pires Ferreira nasce em Feira de Santana no interior da Bahia no primeiro dia do mês de Fevereiro, primeira filha: um nascimento desejado, e desde o princípio uma cisão entre o mundo da mãe, em Salvador, e o do pai, o mundo do sertão.
Quando tem seis anos a mãe resolve se mudar para a capital baiana. Matriculada em colégio de freiras Jerusa não se adapta à disciplina. Volta à Feira de Santana onde passa seis meses na casa da madrinha, freqüenta a escola com prazer. Algumas lembranças da época vão acompanhá-la mundo afora.
Retorna à Salvador, à casa da família no bairro do Canela onde passa a infância e a adolescência. Faz a Primeira Comunhão, um grande trauma, e o mundo deixa de ter datas para ela. Encontra pessoas importantes para a vida inteira. O primeiro namorado tem 18 anos, ela tem 12, ele é estudante de medicina. Conversam de literatura. Com o vizinho em frente, militante comunista, começa a ler Stendhal.
Jerusa escreve e compõe letra e música para piano. Lê Drummond, Bandeira, os poetas brasileiros, puxa forró na escola e canta ao violão em duas vozes com Maria Célia, uma colega do Instituto Feminino da Bahia. É a sanfoneira oficial do Instituto Feminino da Bahia, onde conclui o ginásio. Estuda francês na Casa da França, ensina português e latim para alunos em dificuldade, começa a aprender alemão e, aperfeiçoa o inglês na Associação Brasil-Estados Unidos, onde mais tarde é convidada para dar aulas. É aprovada no vestibular para o curso de Letras Vernáculas da Universidade Federal da Bahia.
Incentivada pelas pesquisas do professor Nelson Rossi, estuda provençal, com Nilton Vasco da Gama. Casa-se e deixa a faculdade. É mãe pela primeira vez. Logo em seguida, a segunda maternidade. Vai para Portugal e estuda na Faculdade de Letras Clássicas da Universidade de Lisboa. Reinicia o curso de Letras na Universidade Federal da Bahia onde faz também um curso em Lógica Simbólica. Nasce o terceiro filho.
Graduada, aceita convite para lecionar como professora colaboradora na faculdade onde se formou. Permanece seis anos na função.Vai para Lisboa pela segunda vez, com toda a família: marido e três filhos homens.Inicia mestrado em História na própria Universidade baiana, orientada pelo professor José Calasans Brandão da Silva, pioneiro dos estudos de História Oral. Inicia correspondência com Paul Zumthor. Viaja à Itália para os seminários de Urbino. Interessa-se vivamente pela Semiótica, em especial pela Escola Russa de Lotman e Uspenski, aprofunda conhecimentos em Etnografia e Etnologia com Mihail Popp.
Recebe o título de Mestre em História pela Universidade Federal da Bahia com o trabalho O Passo das Águas Mortas: Cavalaria em Cordel. No mesmo ano, já divorciada, vem para São Paulo; encontra Paul Zumthor a quem conhece somente de livros e cartas, freqüenta seus seminários na UNICAMP, viaja com ele e sua mulher Marie Louise Ollier para Feira de Santana na Bahia. Inicia doutorado em Antropologia Social no Departamento de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo, orientada pelo professor Ruy Galvão de Andrada Coelho.
Conhece o professor Boris Schnaiderman, ensaísta, grande intérprete da literatura russa, com quem divide sua admiração por Lotman e por outros mestres russos. Publica em 1979 Cavalaria em Cordel pela Editora Hucitec, de São Paulo. Aprofunda-se no estudo dos ciclos medievais, nas técnicas e fontes da edição popular, no grande rio da tradição oral. Mapeia matrizes: as do imaginário, as dos Faustos, da magia. Recebe o título de Doutora em Ciências Sociais com o trabalho No Metal da Fala, ainda não publicado. Professora nos cursos de Jornalismo e Editoração e nos cursos de Pós-Graduação da ECA-USP, onde ministra disciplinas que tratam de livros e edições populares; cultura popular; memória editorial brasileira. Aulas que relacionam cultura e edição; memória e identidade.
Morre o pai. Jerusa separa-se do companheiro de nove anos, Olympio Pinheiro, e viaja para um congresso na Índia. Nasce o primeiro dos quatro netos, Ricardo. Natália, Tiago e Manuel viriam depois. Na volta da Índia, ela e Boris Schnaiderman, já viúvo, decidem ficar juntos e viajam pela América do Sul. Se casam. Novas viagens com Boris: Rússia, Geórgia e Armênia. Obtém o título de Livre-Docente da Universidade de São Paulo com um estudo sobre o Livro de São Cipriano, lenda que chegou ao Brasil e que permanece uma referência no universo das edições populares. Coordena e dirige o projeto editorial Editando o Editor do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA-USP, onde enfoca o trabalho de Jorge Zahar, J. Guinsburg, Ênio Silveira, entre outros. Finaliza o pós-doutorado iniciado um ano antes em Erlangen-Nürnberg, na Alemanha, sobre as questões fáusticas relacionadas à memória e ao impacto na mídia.
Publica em 1992 o Livro de São Cipriano: uma Legenda de Massas. Traduz juntamente com Amálio Pinheiro A Letra e a Voz, de Paul Zumthor, e recebe o prêmio Jabuti de ensaio pelo Livro de São Cipriano. Leciona no programa de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP: caminhos, formas, memórias que se estendem ao futuro e a contribuição dos grandes semioticistas russos. Se torna professora da PUC e funda o centro de pesquisas: Núcleo de Poéticas da Oralidade, que mais tarde passa a chamar-se Centro de Estudos da Oralidade (CEO). Publica Fausto no Horizonte, reunindo três ensaios em torno do tecido fáustico: um contínuo de mão dupla entre a transmissão oral e o universo do livro. Traduz em parceria e como um projeto do CEO outras duas obras de Paul Zumthor, Introdução à Poesia Oral e Tradição e Esquecimento (de Políticas do Esquecimento).
É professora convidada da Universidade de Limoges, grande centro de cultura limusina, onde desenvolve com os colegas Jacques Migozzi e Claude Filteau todo um trabalho sobre Cultura e Memória, e sobre o livro Popular. Participa do conselho da revista Projeto-História do programa de pós-graduação em História da PUC-SP. Traduz e publica obras de Paul Zumthor (Performance, Recepção, Leitura) e Charles Grivel (A Passagem à tela: literaturas híbridas). Participa de projetos de natureza diversa como La Culture en Transit: locomotion, médiamotion, artmotion, juntamente com Walter Moser, da Universidade de Ottawa, Canadá, e Vozes da Barra Funda, com pesquisadores do Centro de Estudos da Oralidade da PUC-SP.
Em 2004 publica a segunda edição de Armadilhas da Memória, na Ateliê Editorial, onde reúne sete ensaios sobre memória e cultura. Participa do projeto Teoria Cultural de la Unidad de Europa y el Paradigma Humanístico com o professor Pedro Aullón de Haro da Universidade de Alicante, Espanha. Recebe a Comenda Mérito Cultural Áureo de Oliveira da Câmara Municipal de Feira de Santana (BA). Traduz e publica Escritura e Nomadismo, de Paul Zumthor, pela Ateliê Editorial.
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FEIRA DE SANTANA / MINHA TERRA
Mais que um ponto no mapa, a cidade baiana de Feira de Santana habita Jerusa como referência de um universo de mitos gerados no sertão, cuja borda toca a vida que se realiza ali a cada dia, na voz e no ato.
…eu tenho um certo encantamento por esse lugar de nascimento. O Zumthor tinha a maior inveja de mim quando eu dizia: ‘Vamos para Feira de Santana, minha terra’. Raras pessoas podem falar desta ligação com a terra. E hoje eu não sei se existe, se é um lugar imaginário, um lugar mítico mas é um lugar onde se alicerçou todo um conjunto de formas de ver o mundo, de dizer, de pensar, forças, afetos…
Notícia de arcanos, grande matriz do imaginário e grande fonte de um afeto permanente: o mundo do Pai.
Eu não suportava o mundo das mulheres, achava o mundo das mulheres muito chato, eu não queria ir para a igreja, para a missa, eu preferia seguir meu pai que era agnóstico, gostava de literatura, de conversar com homens mais do que estar bordando e tecendo intrigas…
E esse mundo vinha também pela voz do pai, que escutava os cantadores e narrava histórias. Um mundo em que os ditos, casos, cantigas celebram evocações distantes e se entrelaçam a outros sons, cores e ritmos: ritos e passagens. Naquele tempo havia uma estrada, que era a estrada Bahia-Feira, em que só passava um automóvel de vez quando, muito raramente…
…e nesta passagem de automóveis, o som destes carros ficou na minha memória, de forma tão forte que uma das coisas mais agradáveis do mundo para mim é estar na cama e ouvir um carro de hora em hora, passando. Essa espécie de tempo demarcado, escondido na lentidão, marcou minha memória, acho que marcou a minha vida.
Tecido de tempo, ainda assim espaço: como convém ao último porto de chegada, primeiro eco de todas as partidas.
Eu estou sempre indo pra algum lugar mas ao mesmo tempo, aonde quer que eu vá, essa força dos primeiros momentos me acompanha. Sou das poucas pessoas que enfrentou todas as coisas da vida sem necessidade de fazer psicanálise. Acho que o sertão é que fez isso.
Segunda cidade da Bahia, quinta praça em volume de
negócios do País, essa encruzilhada de localização privilegiada e vocação
pecuária surgiu no século XVIII em torno de uma capelinha na Fazenda Sant’Anna
dos Olhos D’Água. O sertão, sabe Jerusa, não é, nunca foi um só.
FAMÍLIA / ESPAÇOS DE ELEIÇÃO
Na cartografia anímica de Jerusa o sertão não vira mar.
Sertão, segundo Guimarães Rosa, é onde os pastos carecem de fecho, onde é preciso ter a mão dura e a nuca quadrada. Mas sertão para mim é um espaço do gado, do mundo dos vaqueiros com os quais eu convivi desde que nasci.
A família do pai, em Feira de Santana, é uma família da maior importância para ela. O avô paterno é músico, maestro e farmacêutico. O pai, também farmacêutico, é músico e flautista. Jerusa convive com as nuances do universo sonoro desde cedo, aprende piano.
São grandes paixões minhas a medicina, a cura, o corpo, o outro e a música também… e além disso havia toda essa presença do mundo do sertão. O sertão começou para mim neste momento.
Entre os parentes da mãe, em Salvador, muitos são médicos, diretores de Faculdade de Medicina, retratos nas paredes acadêmicas. Ela lembra os tios lendo poesia na biblioteca, falando de literatura.
Quando eu tinha seis anos minha mãe veio para Salvador. E houve uma transposição do mundo do sertão para o mundo da cidade da Bahia, pequena e marítima, em que existiam outras forças culturais, outros modos de ser, diferentes.
O sertão permanece sempre nela, entidade distinta e primeira identificação. O mar veio depois, ele a encanta, ‘como não poderia deixar de ser’, diz, ‘qualquer pessoa fica extasiada diante do movimento, do desafio, da idéia de perigo’. Mas se a fizerem escolher, é profundamente mais sertão, ‘aquele do silêncio com os pássaros, com o gavião’.
Eu passava todas as minhas férias na região de Feira de Santana na fazenda do meu tio Carlito Bahia, um mundo semi-feudal, cheio de vozes, de injustiças, cheio de desesperos, de desigualdades sociais, mas ao mesmo tempo cheio de pactos, de forças, de universos a descobrir.
Depois do sertão, o lugar eleito é São Paulo, a paulicéia merecedora de declaração de amor.
Cada vez que volto à esta cidade, eu tenho vontade de beijar este solo quando chego. Eu gosto muito de São Paulo.
A São Paulo de Jerusa está ligada à uma certa recusa ao mar, ao reconhecimento do medo – tanto medo que a fez imaginar os edifícios da cidade grande como uma enorme flor carnívora que iriam fechar-se sobre ela, engolindo-a, e ela entrou no primeiro cinema se escondendo. É grata à cidade por esta revelação.
Quem molda a gente não é a mediania, são as coisas extremas. Quem me moldou foi a dor e eu descobri que este território era um território de muito medo já em São Paulo.
Moça protegida dentro do espaço familiar, vislumbra São Paulo na doença: é tratada no Hospital das Clínicas com suspeita de problema grave no linfático.
Foi aqui que eu conheci o sofrimento e a dor. Isso foi forte pra mim, essa identificação.
No estúdio mantido no bairro paulistano da Barra Funda, um estúdio cheio de livros, há toda uma seção de história da medicina: histórias da ciência ocupam as prateleiras. E ela reflete sobre tudo isso e recolhe experiências e relatos orais.
Mais uma vez estou tentando compatibilizar o sertão e a cidade maior.
Cidade e Sertão: rima oculta essa, cheia de labirintos que ela percorre e revela em muitos livros e mais de 200 artigos publicados. Alegre, intensamente. Possui uma energia prodigiosa. Gosta de se sentir assim, sempre criando. Rimando erudito e popular.
A grande matriz desta direção era esta necessidade do sertão e do mundo medieval, que eu me encantei desde cedo. A partir desta diretriz fui alcançando o que fui podendo. Se de um lado tive obstáculos enormes, de outro fui uma felizarda porque pude ter grandes mestres em vários espaços do mundo. Mas sempre conduzindo essa junção da minha personalidade, desta construção permanente e móvel de personalidade, com os temas que me eram mais caros.
Adora a vida, uma relação de poros. Adora cantar. Chegou a pensar que ia ficar cantando na noite, num certo momento. Gosta das pessoas também, gosta de estar com as pessoas, sobretudo com o irmão Guilherme que lhe fez descobrir o sentido para muitas coisas. Seu mestre e guru. A presença da prima e amiga, a poeta Myrian Fraga, permanece forte, um diálogo não interrompido. Acha que ainda não fez a obra que devia ter feito. As gavetas, diz, estão cheias. Por conta da tal intensidade, suspeita, talvez não dure muito.
Seria querer demais … estou tentando negociar com o Criador alguns anos, assim, de possibilidades, para ver se realizo estas escritas que estão todas ativas e germinando dentro de mim.
FORMAÇÃO / ATUAÇÃO
Entre a Cidade e o Sertão, Salvador é uma quase ruptura aos seis anos de idade – inquieta, mundo herético muito presente correndo nas veias. Matriculada em colégio de freiras fica sempre de castigo: castigo sem intervalo, fazia xixizinho nas meias, voltava. Voltou para o Sertão, seis meses na casa da madrinha em Feira de Santana. Lá, vai à escola. De modo que são duas as matrizes dessa primeira impressão.
A escola em Feira marcou tolerância, bondade. Enquanto a de Salvador marcava competição, um universo de meninas granfininhas, a de Feira me oferecia toda uma inteireza.
A piedosa senhora meio beata que dirige a segunda escola que freqüenta em Salvador considera pecado toda dúvida, quanto mais inquietação. Jerusa tem muitos pecados. De modo que tira as datas do mundo, este, marcando-o com eternidade. Ritual seu, pecado, faz primeira comunhão.
O primeiro grande trauma da minha vida foi o fato de eu ter feito a primeira comunhão nesta escola… essa festa da primeira comunhão foi um dos grandes tormentos que eu experimentei na cidade.
No bairro do Canela onde vive em Salvador o candomblé é punido sempre. Punido com polícia que vinha buscar os pais-de-santo e seus instrumentos de percussão: um universo à margem e um universo vedado a mulheres da sua condição social. As religiões africanas na Bahia não tinham o prestígio e a legitimidade que tem hoje. ‘A meia-legitimidade’, desconfia, ‘porque em certos momentos se transforma em folclore’.
Naquele momento eu nem cogitava de tudo isso. Eu vim a conhecer o candomblé e os ritos africanos da Bahia depois de adulta e depois de muito tempo mesmo.
O outro, entre as paixões de Jerusa. Na geografia da diferença percebe o potencial de diálogo. Audácia é o que contrapõe à organização conceitual com rígidos começos, meio e fim. Por exemplo, o desafio da cultura das bordas, a quebra de hierarquia entre culturas, o não aceitar divisões entre erudito e popular ou distribuição de gradações internas. Provoca espasmos na normalidade. Folclore, disse?
Pitoresco é o que come rã quando nós não temos o hábito de comer.
Odeia ouvir coisas como terceiro mundo, primeiro, segundo. Aponta as ilhas de miséria que se vê em toda a parte. Londres, Paris, Nova York. Grandes levas de migrantes se espalhando pelo mundo. Oligopólios, extermínio de gentes, de natureza, horror. Na sua posição de combate permanente reserva a primeira luta a estes espaços.
Estamos dialogando com todos de pontos integrados à grande rede. Uns com melhores condições, outros tendo que lidar com catástrofes, desastres sociais e políticos, mas não nos venham colocar no lugar de pitorescos…
Brasil – como o sertão do desejo, do outro, lugar distante – acha que continua meio folclorizado, neste sentido là bas, por muitos. É o que percebe, alguns momentos, em congressos internacionais. Foi a vários, organizou mais de dez aqui no Brasil através do Centro de Estudos da Oralidade que coordena no curso de pós-graduação em Comunicação e Semiótica, na PUC/SP. Na academia, quando traz as bordas para o centro, ainda espanta. E quando diz que uma coisa é tão importante na poesia popular como na voz de outras poesias, espanta ainda mais.
Brinco que continuo do sertão ao mundo, o tempo todo, não há só do improviso, em alguns, mas da elaboração, em outros.
Conferencista de talento, é solicitada por inúmeras universidades no Exterior: Moscou, na Rússia; Calgary e Ottawa, no Canadá; Universidade de Limoges, na França. A língua provençal formou uma espécie de lastro para o universo poético dos trovadores medievais. Jerusa defende a relação entre a poesia oral dos cantadores populares e a poesia medieval.
Essa ligação existe porque é uma poesia em movimento, uma poesia não só do improviso, em alguns, mas da elaboração, em outros.
Na época da graduação em Salvador estuda provençal, lê poemas nesta língua. Forma-se em Letras Vernáculas pela Universidade Federal da Bahia. O curso exige estudos em profundidade de latim, português, filologia românica, literatura portuguesa. Um dos professores, Nelson Rossi – futuro autor do pioneiro Atlas Prévio dos Falares Baianos – está empenhado em instalar um laboratório de fonética experimental e estimula o interesse pela Dialetologia em Salvador. Os alunos descobrem Lingüística com ele. Jakobson, pela primeira vez. Para a menina de 18 anos, um deslumbramento. Dura pouco, quer dizer, esse início.
Eu fiz o vestibular e me retiraram e eu fiquei em casa e fui proibida de estudar por muitos anos.
Com 21 anos já está com dois filhos. Há todo um consenso que diz que não é bom que uma mulher fique estudando.
Eu me casei tendo a certeza de que não era aquilo que eu queria. E não era por mal da outra pessoa, só que a outra pessoa era uma outra pessoa que não estava percebendo a força de toda aquela inquietação.
A diretora do Instituto Feminino da Bahia, onde faz o ginásio, se abranda meio a contragosto diante daquela inquietação. Henriqueta Catarino é uma educadora severa, exige certo comportamento das alunas.
‘Não arregaça as mangas que parece mangas de filha de lavadeira! Não desça pelo corrimão que é uma coisa de maus modos para uma moça de família!’.
A voz ainda ecoa. Mas Jerusa evidencia intensa vida intelectual. Lê Drummond, Bandeira, os poetas brasileiros, aprende com facilidade, fala idiomas, interpreta clássicos ao piano. As pessoas que marcam sua vida na época discutem literatura com ela: o primeiro namorado, estudante de medicina; o vizinho em frente, Aquiles Gadelha.
A família Gadelha tinha uma história de luta política, de militância, e ele me deu pela primeira vez grandes livros pra ler.
Lê Stendhal, ensina português e latim para os colegas que tinham dificuldade. Desde então são muitos anos de atividade como professora. O establishment tolera algum desvio seu às vigências da extroversão – que ela seja a sanfoneira oficial do colégio. Jerusa puxa o forró e canta com uma colega ao violão.
Eu era tão fascinada pelo fato da harmonia da segunda voz que ficava muito de castigo – a minha vida toda foi marcada por ficar de castigo.
Jerusa reza a duas vozes, conversa a duas vozes. De longe observa a efervescência de Salvador. A capital baiana transpira, nesse período final dos anos cinqüenta até 64, um momento cultural de intensa convivência ancorado no prestígio da Universidade. Jerusa é permanentemente vigiada. Quando desaba o golpe militar, a vigilância fica pior. Temem ‘deixá-la solta por aí para entrar em movimentos estudantis’, coisas assim.
Eu diria que não tenho geração, fui subtraída da minha geração. Não tinha como conviver com as pessoas que me interessavam, o Glauber, o Caetano, nem com aquelas que estavam na praia sem lenço nem documento. Eu estava casada, em casa, mãe de dois filhos, três filhos depois e foi uma luta para que me permitissem voltar a estudar e completar o meu curso de Literatura Portuguesa.
Lisboa, onde o marido é engenheiro do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, é o primeiro passo desta reconquista. Em 1962 Jerusa passa um ano em Portugal e ingressa na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Tive mestres extraordinários e com alguns convivi certo tempo.
Entre eles Luis Filipe Lindley Cintra, uma das figuras principais da Lingüística portuguesa; Maria de Lourdes Belchior Pontes, grande especialista do barroco português; o ensaísta Jacinto do Prado Coelho.
Foi essa formação na Universidade clássica em Lisboa que me levou depois a estudos medievais .
De volta à Salvador e à Universidade Federal da Bahia, termina o curso que mal havia começado e em seguida é convidada para lecionar Literatura Portuguesa na faculdade. Apresenta como tese de concurso seu primeiro trabalho de porte sobre a novela de cavalaria.
Esse mundo do romance de cavalaria que ligava a Idade Média com a Indústria do Livro e a grande leitura do século XVI, eu fiz todo na Biblioteca Nacional de Lisboa.
De um lado, Lisboa, presença fundamental e assídua; de outro, a História Oral, na extraordinária dimensão que lhe trouxe José Calazans Brandão da Silva, um dos pioneiros no estudo e profundo conhecedor da epopéia de Canudos. Calazans é seu orientador no mestrado que inicia em 1974 na Universidade da Bahia. Entre os professores, Pedro Agostinho da Silva, mestre em Antropologia e filho do grande Agostinho da Silva, um pensador português do século XX, que vive no Brasil entre 1944 e 1969, expulso pelo salazarismo.
Esse mestrado foi onde pude reunir o sertão da minha origem com a erudição que eu adquiri então. Foi uma espécie de síntese e resultou no livro mais importante que escrevi até hoje que é “Cavalaria em Cordel”.
Em Cavalaria em Cordel Jerusa estuda o desdobramento dos ciclos narrativos medievais em várias formas, inclusive no folheto do sertão. Na obra de 77, publicada em 79, fala de matrizes virtuais sem nunca ter visto virtualidade, ou pensado em computador.
Este livro tem anos à frente do seu tempo, eu ainda assino em baixo pela densidade e pela novidade.
Para isso contribui a vivência entre 75 e 76 na Universidade de Urbino, na Itália, onde participa de seminários. Assiste aos do filósofo francês Jean-François Lyotard e os do semioticista italiano Umberto Eco. Além da Semiótica, duas novas áreas a interessam: a Etnografia, que estuda com o mestre romeno do Instituto de Etnografia e Etnologia de Bucareste, Mihail Popp, e o aparato mitológico indo-europeu, com o mestre russo Boris Oguibenin, cuja abordagem lhe oferece todo um lastro para pensar o substrato que permeia o relato do conto oral.
Liguei aquele mundo que a Semiótica me abriu em Urbino ao mundo do Sertão.
CAMINHOS ABERTOS / ESCRITURAS
Jerusa é uma das principais divulgadoras no Brasil da obra do medievalista suíço-canadense Paul Zumthor, autor do que considera o primeiro ensaio moderno de poesia medieval – Éssai de poétique médiévale. Ed. Seuil, 1972 – que enfatiza o diálogo permanente entre culturas.
… eu li em 75, fiquei fascinada passei três dias dentro do quarto sem sair.
Na ocasião, envia a Zumthor sua tese sobre o romance de cavalaria. Ele responde elogiando o autor, que pensou ser homem. Confunde os nomes Jerusa e Yerusha, de matriz hebraica. E assim Zumthor a trata, algum tempo, até descobrir o engano.
Ele teve um peso enorme em toda a elaboração de meus trabalhos mas eu acho, sinceramente, que a marca do meu trabalho sobre o futuro da obra dele também foi forte…
O fato de os textos medievais terem emergido de culturas com base na oralidade intriga Zumthor. A busca de ferramentas de compreensão adequadas à estética destes textos faz com que procure outros horizontes. Em 1977 desembarca no Brasil.
… e nesse momento conheci Paul Zumthor porque nós chegamos juntos a São Paulo. Ele para dar curso na Unicamp, eu para fazer doutorado… e deste momento em diante nós não nos largamos mais.
Zumthor rompe com a visão tradicional de fato literário e amplia a abordagem ao conjunto da Idade Média Ocidental; ultrapassa limites e persegue até o fim uma noção definitiva e definidora do período: o espaço, parâmetro de toda civilização.
… ele quis ir para o Sertão comigo. Transformou tudo isso num grande laboratório. Não só o sertão do Brasil como a África depois, nas viagens sucessivas e nas aberturas que ele conseguiu produzir no mundo do ensaio, da reflexão sobre a cultura.
Para Zumthor, falecido em 95, o desafio da Idade Média tem um apelo a mais: este é, talvez, o último momento em que a civilização ocidental se deixa captar na sua globalidade.
… ele veio algumas vezes à minha casa. Foi ver o lugar onde nasci, visitar Feira de Santana, visitar Bonfim de Feira a terra onde meu pai nasceu – um lugar muito pequeno mas que teve presença extraordinária por causa de um vigário, Cupertino de Lacerda, um dos maiores oradores sacros brasileiros e além disso senador da república que viveu seu ostracismo lá: comprou casa, mandou pintar por um grande pintor, Vieira de Campos, ensinou flauta, música clássica aos meninos todos inclusive meu pai, leituras francesas, poesias, houve toda essa irradiação…
O Núcleo de Poéticas da Oralidade, que Jerusa funda e dirige desde 1993 na PUC/SP, mantém um projeto responsável pela tradução de várias obras de Zumthor e realizou colóquios em sua homenagem.
É uma aventura muito grande você conseguir pensar, sistematizar esse mundo de emoções e de vias que eu abri, eu abri muitas vias. Então isso é um desafio também, e estas coisas vão indo.
Através do Núcleo, Jerusa promove intenso intercâmbio entre pesquisadores: primeiro foi o notável Eleazar Meletinski em 1995 depois, ao tratar de Cultura e Memória, os colegas Claude Filteau e Jacques Migozzi da Universidade de Limoges, França; Jean-Yves Mollier, da Universidade Versailles em Saint-Quentin-en-Yvelines, França; Igor Shaitánov e Sergei Nekludov do Instituto de Altos Estudos da Universidade estatal de Moscou, Rússia; Charles Grivel da Universidade de Mannheim, Alemanha; Idelette Muzart velha amiga desde a Universidade Federal da Paraíba agora da Universidade Paris/Nanterre – têm vindo regularmente ou planejam vir aos encontros no Brasil.
Esta rede que vamos formando de pesquisadores, de estudantes, de orientandos, de dialogantes, de ex-orientandos que continuam conversando, amigos também… gera outros trabalhos, produz pensamentos em forma móvel, pensamento em forma articulada porém na mobilidade das descobertas e da incorporação de novos ambientes.
Jerusa orientou várias teses de mestrado e doutorado em Comunicação e Semiótica da PUC/SP e na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, onde leciona desde 1983 nos níveis de graduação e pós-graduação em Jornalismo e Editoração.
O relacionamento direto com a Universidade de São Paulo vem desde 1977, quando Jerusa chega à cidade para fazer doutorado em Literatura Portuguesa com o professor Massaud Moisés, passando depois para Ciências Sociais.
… e de repente eu me encontro num departamento de Sociologia, eu que não tinha nada a ver com a sociologia dos sociólogos…
Traz Cavalaria em Cordel consigo. Maria Isaura Pereira de Queiroz, discípula de Roger Bastide, profunda conhecedora das raízes religiosas e messiânicas do Brasil, da cultura camponesa ao carnaval passando pelo mandonismo na política, convida-a para fazer parte de um grupo de estudos que mantém na faculdade de Ciências Sociais: Sociologia da Cultura Brasileira.
Na mudança de rumo, a orientação do doutorado é feita por Ruy Galvão de Andrada Coelho, professor famoso pela coragem intelectual, conforme uma quadrinha a ele dirigida por Mario de Andrade :
É, Ruy bom, / cuidado! Motorista / Dos highlands do pensamento, / Nessas ‘landas’ os nativos / Não consertam as estradas.
A enorme erudição da sociologia de “Ruy-Bom”, como diz Mário, sintoniza a sabedoria dos literatos e naquele momento sintoniza Jerusa. Ele a orienta na defesa da tese No Metal da Fala a partir da criação do poeta popular, que diz: “eu não invento nada, eu escuto e coloco no metal da fala…”
… essa questão da poética me acompanha o tempo todo, essa sensibilidade para a linguagem e a poética…
O doutoramento é concluído em 80, mas Jerusa deixa a tese madurando na gaveta, ainda inédita. Uma espécie de cuidado com o apelo da escritura. É muito exigente com os textos que publica, leva anos trabalhando e refazendo até liberar.
Naquele momento o melhor foi aguardar enquanto eu crescia, encontrava alguns livros que faltavam. Às vezes é uma palavra que falta, uma imagem que falta, alguma coisa que me permite continuar.
A imagem a impressiona enormemente, pela ligação que estabelece com a idéia e tudo mais.
Sou capaz de ficar noites remoendo aquela mesma coisa que aparece, até que aquilo se transforme num outro modo de pensar e de dizer.
Algumas obras suas são trabalhosíssimas, caso do estudo do livro de São Cipriano, tese de Livre Docência que lhe custa uns seis, oito anos de trabalho, com descobertas de documentos originais e toda uma teorização da cultura das bordas. É publicada pela Perspectiva em 92.
Eu sou da oralidade e da escrita, meço o peso e a distância de cada palavra.
Depois disso publica um livro sobre o Fausto, que se chama Fausto no Horizonte, a partir da conjunção dos faustos populares e sertanejos com os faustos alemães, também populares.
E esse trabalho foi uma espécie de demarcação para um campo enorme de pesquisas que está aí, esperando por mim.
Ultimamente as palavras andam explodindo, assim, aos borbotões. Deita para dormir e surgem mil idéias, às vezes até em francês e espanhol, línguas em que anda publicando muitos ensaios e artigos.
Nesse momento estou me preparando para um projeto de maior envergadura.
Qual? Recuperar um conjunto de formulações, talvez.
Talvez um desempenho da ordem da escritura que se recusa a esperar mais.
TEMPO, TEMPOS / ENCONTRO
Jerusa e Boris Schnaiderman
Os filhos de Jerusa vivem na Bahia, vêm sempre a São Paulo.
Eles são muito ligados comigo, cada um seguiu a sua vocação, a sua inclinação. Cada um à sua maneira, têm universos bastante diferentes. Só meu filho mais novo, que é músico… partilha um certo ideário, meio à margem de qualquer formalismo social ou de qualquer pretensão institucional.
O ano é 1986. Esse ano é de muita intensidade para Jerusa: o pai morre em maio, pouco depois ela se separa do companheiro, nasce o primeiro neto, Ricardo, que considera hoje um dos seus grandes amigos.
… às vezes (acho) até mais velho que eu, dançamos e cantamos, viajamos e pegamos luta às vezes, ele é muito inteligente e parece muito com Boris, fechado, e ao mesmo tempo me escreve um cartão assinado assim: Da única pessoa que pode dançar tango com você em Paris.
Em 86 Jerusa embarca para a Índia, vai participar de um congresso mundial de Sociologia cujo tema é Change, mudança. O diálogo com os colegas inclui a relação das culturas tradicionais, arcaicas e de sedimentação mítica em contraponto com as modernizações.
Eu precisava desse espaço. A Índia foi para mim um hiato, como um germinadouro ou uma descoberta…
Decide permanecer algum tempo no país e se hospeda na casa de amigos brâmanes. A Índia é a mais forte das suas experiências de descoberta do mundo. Tão forte que nunca teve coragem de voltar lá.
… perceber por exemplo a variedade dos movimentos corporais, do olho, do olhar, do gesto, do tornozelo, da prática da fome, da morte, de tudo que é ao contrário, do que às vezes você pensa que é de um jeito, quando chega lá vê que é de outro.
A Índia trouxe o sertão também. Ela atravessa os Himalaias, de uma aldeia a outra, a cavalo, cantando músicas de Elomar Figueira Mello, o poeta, compositor, cantor e violeiro das paisagens áridas da Bahia; diploma de arquiteto, é avesso à qualquer exposição.
Elomar, grande amigo, diz e eu estou de acordo com ele, que nossa amizade tem 40 mil anos.
Ainda em 86 ela e Boris Schnaiderman decidem viver juntos.
… e há toda uma adaptação, uma descoberta de outras coisas e um convívio intelectual intensíssimo, um amor, uma admiração, um respeito que nós vamos mantendo nesse tempo todo de convívio, de morar juntos, de discutir juntos.
É uma relação de âncoras fortes e muitos caminhares.
Acho que ele me trouxe não só uma serenidade como uma precisão em termos de determinadas coisas e eu desvendei mundos muito fortes, acredito, que para ele também.
Vão à Rússia, Geórgia, repúblicas soviéticas. A Armênia é um ponto demarcado na geografia afetiva de Jerusa. Berço do mundo visto da janela. Lá está, em frente, o monte Ararat tão perto que é possível imaginar os bichos, a Arca de Noé…
O tempo tem muitas dimensões. Existem muitas temporalidades em relação aos eventos, em relação às culturas, aos ciclos de culturas mas existe principalmente a temporalidade psíquica que o velho Bergson chamou de duração concreta, aquele tempo intenso, vital, que é o afetivo, que é o tempo da ordem do intelectual ou da grande descoberta de alguma coisa em que um segundo pode ter a duração vital e anímica de séculos.
Problemas surgem e são sérios, às vezes de saúde pessoal ou dos filhos, às vezes em relação ao ser no mundo: uma certa angústia de estar num tempo injusto, conturbado. Mas existe também toda uma alegria do caminho que em Jerusa é muito forte. Não deixa de viajar, cumprir compromissos internacionais, cursos de pós-graduação, seminários. A velhice de certo modo a espanta.
Não é uma vivência tranqüila, agradável, não; ela é difícil porque a cada dia anuncia uma marca do tempo sobre o seu corpo e sua imagem.
Os problemas vêm e passam. Refere-se ao tempo atual como quem cita um tempo bíblico, o tempo de plantar e o tempo de colher.
… eu sinto que posso exercer o meu corpo e aquilo que puder chamar de alma, de espírito de modo de ser, de sensibilidade, de tudo que puder desenvolver e sobretudo tentando me aperfeiçoar e aprender sempre, como pessoa, a partir mesmo das bobagens que a gente faz, e faz sempre o pior é isso, morre aprendendo e fazendo besteira e fazendo de novo e de repente diz não faço mais e volta a fazer. Mas não é isso? Que é a própria condição de estar vivo?
Serenidade. Uma serenidade viva, de batalha, de amor às descobertas, de muitas colheitas e semeaduras. Esse é, sempre foi o seu momento.
Lucila Meirelles inicia sua carreira independente nos anos 80 como autora de vídeos experimentais. É premiada no Brasil e no exterior com “Pivete”, “Sinfonia Panamérica”, “Crianças Autistas”, “Cego Oliveira no sertão do seu olhar”. Os vídeos participaram de mostras internacionais importantes, como The Kitchen, Manifestation Internationale de Vidéo et Télévision (Montbeliárd) e The Black Aesthetic (Washington). Fez duas curadorias de resgate e restauro do vídeo no Brasil: “Pioneiros” e “O olho do diabo”.
Norma Freire é jornalista, assina artigos de política internacional, arte e cultura em várias publicações da grande imprensa e da imprensa nanica; prêmio Esso por trabalho em equipe. Diretora de TV, documentarista e editora, é graduada em Ciências Sociais, pós-graduada em Comunicação e Semiótica, autora de livros infantis (“O Gato”, “A Casa da Joaninha”, Berlendis), infanto-juvenis (“O Cavaleiro do Gesto”, Global) e pesquisadora da conjuntura celta e latina na Irlanda Medieval.