by Kierra Leyco
Tropa de Elite: O Inimigo Agora É Outro (José Padilha, 2010) conta a história do Capitão Roberto Nascimento que após uma decisão precipitada do seu colega, Matias, é desligado do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais) mas é nomeado para o cargo de Subsecretario de Inteligência da Secretaria Estadual de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Vendo a situação como uma oportunidade de melhor combater o crime, ele descobre que o problema é mais complicado do que ele imaginava. Nascimento é então confrontado por uma situação política envolvendo grupos paramilitares (milícias) e oficiais governamentais. O filme conta a história a partir do ponto de vista de Nascimento, pois é relatada pelo narrador-personagem.Tenho aqui o objetivo de examinar a importância e a verdade atribuída ao narrador-personagem, Capitão Nascimento. Esse ensaio analisará a verdade atribuída ao narrador como ‘voz da verdade’, um elemento documentário que dá poder ao narrador de impor sua própria opinião. O narrador é, portanto, vital para o desenvolvimento do filme, levando o espectador a melhor entender a situação de corrupção. Desse modo, o ensaio questionará e evidenciará igualmente capacidade do narrador de mostrar a corrupção atual enraizada no sistema. Mesmo não estando presente em certas cenas, ele tem a representação de um narrador onisciente, revelando a verdade, já que o filme conta a história do seu ponto de vista.
O Título
É importante primeiramente levar em conta o título do filme. O primeiro filme Tropa de Elite (2007) leva em conta o traficante da favela como o principal inimigo. Diferentemente, o segundo filme de José Padilha se foca na visão da instituição pela perspectiva de Nascimento. “O Inimigo Agora É Outro” demonstra que o inimigo vai muito além do que apenas os traficantes, mas também exibe todo o sistema corrupto que envolve o Brasil, que inclui desde traficantes até policiais e políticos. Como no primeiro filme, o narrador tem a função de revelar-nos sua história. Isso é enfatizado no início com o uso de flash-forward, quando o inimigo aparece atirando contra o narrador-personagem de Nascimento. Os inimigos revelam ser policias corruptos que estão fazendo uma represália por ele ter interferido nos negócios de corrupção. O filme é então baseado na vida do narrador-personagem e comprova ser a verdade dele.
A Função do Narrador Como a ‘Voz da Verdade’
A presença de um narrador mostra uma falta de confiança nas imagens visuais. Desse modo, as imagens podem ser eficazes, mas a dependência do narrador completa a obra na forma de palestra ilustrada. (Wiener, 2007, p. 73) O narrador não questiona, ele afirma. Por isso, o público também não sente necessidade de questionar as palavras do narrador porque ele é a representação da ‘voz da verdade’. Similar, a Ônibus 174 (2002), os narradores do documentário são a voz da verdade ao explicar os fatos da tragédia. No filme Tropa de Elite: O Inimigo Agora É Outro, Nascimento impõe uma verdade com suas palavras. Essa ‘verdade’ é enfatizada de forma que as imagens seguem a narração. No filme, temos a exibição do policial militar, Rocha, que sobe o morro de Rio das Rochas para coletar o “dinheiro do arrego” dos traficantes. Não tendo o dinheiro necessário, Rocha mata-os. A tela fica preta e nesse instante a voz de Nascimento interrompe com os fatos da verdade dizendo “o que aconteceu de verdade foi bem diferente”. Nascimento continua narrando e explica que, “nada como uma crise econômica para aguçar a criatividade. Foi só eu cortar o arrego do tráfico para os corruptos perceberem o óbvio. Qualquer comunidade do Rio de Janeiro é muito mais que qualquer ponto de venda de drogas.” Pelo seu discurso, vemos uma cena similar àquela de antes mas que tenta revelar-nos outra história, a qual reforça o discurso do narrador. Como resultado, Nascimento divulga a realidade da situação, criando uma relação de confiança entre ele e os espectadores; o que reforça a ideia de um narrador de veracidade. Essa relação é reforçada pelo modo como o narrador se dirige ao espectador, tratando-o várias vezes de “amigo ou parceiro”. Similar ao documentário Edifício Master (2002), o narrador utiliza palavras familiares que amplificam a verdade atribuída ao seu papel como ‘voz de verdade’.Um filme tem a capacidade de “vomitar informação” sobre a realidade, em esperança que a o público se dê conta da situação atual. (Vieira, 2003, p.86) Como o narrador de Padilha, o filme Cronicamente Inviável (2000) em vez de usar um narrador, utiliza duas cenas parecidas e através da comparação entre as duas,questiona a realidade da nossa sociedade. Portanto, Nascimento ‘vomita informação’ com a intenção de fazer o público refletir sobre a situação real. Por exemplo, Nascimento diz que “na verdade, era o BOPE que estava ajudando o sistema. […] O sistema estava mudando, estava evoluindo. Antes, os políticos usavam o sistema para ganhar dinheiro. Agora, eles dependiam do sistema para se eleger.” Nascimento não somente nos apresenta uma verdade no filme, mas consequentemente, tenta nos comprovar como o sistema corrupto atual se enraíza em todos os setores para se consolidar. Como explica Enrique Arias (Arias, 2006, p. 297-298), na realidade, a relação entre traficante e politico é de clientelismo. Os políticos se asseguram com os votos dos moradores da comunidade, pois são beneficiados privadamente pelos traficantes, e os traficantes pelos políticos. O sistema é, portanto, um negócio.
Tropa de Elite: O Inimigo Agora É Outro e o Elemento de Documentário
Devido a um aumento de crime, pobreza e violência urbana no Brasil, o tema de problemas sociais no cinema cresceu nos anos 90. (Borges, 2011, p.130) Como documentários, Tropa de Elite: O Inimigo Agora É Outro, explora alguns desses elementos mas de forma melodramática onde existe sensacionalismo e exagero emocional. O narrador também é um elemento fundamental num documentário porque ele conta uma história que o pertence. Tropa de Elite, como explica Ismail Xavier, (Xavier, 2012, p.8) expõe temas já explorados por documentários. O documentário Ônibus 174 (2002) de Padilha por exemplo, se baseia nas declarações de policiais e vítimas que estavam envolvidos nos acontecimentos. Estas vozes são diretas já que no documentário não existe um narrador principal, mas, semelhante a Tropa de Elite: O Inimigo Agora É Outro, utiliza o testemunho para formular a história. Como resultado, a imagem exibida fortalece as palavras do narrador já que seus comentários acompanham o filme com a narração voice-over. Por está razão a utilização das vozes é completamente diferente já que no filme de ficção ela é subjetiva e não direta.A narração voice-over geralmente extrai o espectador da ação da tela, e destrói a ilusão por relembrar-nos que estamos assistindo um filme. Ademais, essa desconexão é acrescentada com o questionamento do espectador ao interrogar: porque Nascimento está narrando? E com quem ele está falando? A presença da narração de Nascimento é uma forma de contar um conto. Similarmente, o documentário de Ilha das Flores (1989), utiliza o elemento do narrador para guiar o espectador. A diferença é que Nascimento professa sua própria história utilizando várias vezes “eu” ao referir-se a cena, já que o documentário de Ilha das Flores nos oferece informação pela parte de um narrador-onisciente. Semelhante ao documentário Ilha das Flores, o elemento do narrador sugere, entretanto, uma certa falta de inteligência pela parte dos espectadores, já que o narrador tem que constantemente explicar a cena. No filme, isso é claro quando a repórter, Clara, está investigando as milícias e seu amigo fotógrafo está tirando fotos, para uma matéria de capa, de indivíduos carregando caixas para dentro de uma casa. Na cena, o narrador explica que “as fotos eram mais que suficientes para matéria de capa. Mas jornalista, amigo, é curioso. A Clara não ia sossegar enquanto não descobrisse o que tinha naquele sobrado.” Enquanto isso, a jornalista parece muito ansiosa sendo retratada indo até a porta da casa. Apesar disso, o narrador é essencial em certas cenas porque ele nos oferece uma informação que não é claramente distinguida na imagem exibida. A Clara e seu amigo identificam apenas que os indivíduos carregando as caixas parecem ter roubado as armas da delegacia, que tinham o brasão da polícia raspado. O narrador, por outro lado, nos oferece muito mais informação. Nessa mesma cena, Nascimento narra “se dependesse do Rocha, a milícia ia entrar no bairro Tanque devagarzinho. Ninguém nem ia perceber. Só que eleição tem data marcada, neguinho pressionou e Rocha montou acampamento na casa de uma viúva.” O narrador é, portanto, fundamental especialmente porque a cena não nos apresenta essa informação que nos ajuda a melhor entendermos os acontecimentos.Tropa de Elite: O Inimigo Agora É Outro, manifesta elementos de qualidade de documentário. Como comprova Ismail Xavier, documentários criam uma “etnografia discreta” que expõe um pedaço de evidência da nossa sociedade. (Borges, 2011, p. 131) O filme usa a narrativa de um policial para refletir suas experiências e sua verdade, o que adquire um lado documentário presente no filme inteiro. Diferentemente de O Homem do Ano (2003), onde o foco principal não é de retratar a violência ficcional, mas sim a verdade da vida do personagem Nascimento e como sua história reflete uma verdade sobre o sistema brasileiro. O filme justifica, porém, elementos de verdade de como a corrupção está enraizada na sociedade brasileira, o que é enfatizada no testemunho do narrador. Consequentemente, o filme estimula a reflexão, por ter objetivo de impactar e ser polêmico, ao revelar uma realidade da sociedade.
Impondo Uma Opinião
A voz do narrador tem um impacto muito grande junto ao público. A sua importância é fortalecida com a ênfase dada a sua voz no momento da narração. Isso concede que Nascimento tenha então um poder de ‘Deus’ ao impor não somente uma verdade, mas também uma autoridade. Quando Nascimento entra de helicóptero para matar, para “limpar” a favela, o narrador se refere aos traficantes como “vagabundos”. Dessa forma, a narração de Nascimento impõe ao mesmo tempo uma ideia negativa da favela, que é reforçada por uma imagem na tela, já que o foco é os criminosos que se encontram lá. Como explica Daniela Ikawa, a nossa identidade é formulada por nossa relação com outras identidades, e também em parte com quem nos associamos. (Ikawa, 2014, p. 495) Consequentemente, Nascimento expõe sua identidade como ex-Capitão do BOPE, se associando com o lado ‘bom’ da justiça, e declarando os bandidos da favela como “vagabundos”. O narrador retém então a capacidade de impor sua própria opinião sobre o espectador, já que ele não será questionado. Essa imagem do policial do BOPE ‘bom’ e o traficante ‘mau’, é fortalecida no início do filme quando Matias salva a vida de Fraga que estava sendo ameaçada pelos prisioneiros, ou melhor, como diz o narrador “os vagabundos.” Sendo estes negros e referenciados negativamente, os prisioneiros retratados no filme tem a capacidade de fortalecer estigmas raciais ao enfatizar essa identidade. Muitas vezes, como explica Jan French, “os pobres e os não-brancos são alvos dessas palavras depreciativas que impõem uma realidade de discriminação da sociedade.” (French, 2013, p. 161) Mesmo se um político é bandido por ser corrupto, Nascimento não o refere como “vagabundo” mas apenas como “corrupto.” O narrador impõe sua opinião, e interpretamos a cena pelo seu ponto de vista.Sendo o narrador da história, ele se expõe como herói, mesmo sendo de certa maneira um anti-herói. Sua narração pretende explicar-nos como ele tenta, de forma ‘heróica’, lutar contra a corrupção arraigada na instituição. Nascimento profere “a minha missão era mais importante que meus problemas pessoais. Eu fiz o que disse para o Matias que eu ia fazer, e transformei o BOPE em uma máquina de guerra.” Como nesse exemplo, Nascimento declara diversas vezes no filme o ‘eu fiz’. Isso acentua a guerra dele contra um sistema inteiro se colocando como herói. Isso é especialmente evidente no final quando Nascimento diz, “eu fui para a CPI do Fraga para detonar o sistema. Eu fui lá para falar a verdade. Botei muito político corrupto na cadeia.” Por essa razão, ele apresenta os fatos mas novamente se auto-promovendo. É claro que como narrador, Roberto Nascimento fala bem dele mesmo. Quando o Rocha ajuda o Matias a retornar ao BOPE por querer tomar a comunidade do bairro Tanque, por exemplo, o narrador explica que “só teve um problema. O Rocha foi chamar justo o Matias para trabalhar com ele. Quem treinou o Matias foi eu, parceiro.” Ele se elogia, não somente como um capitão capaz, mas também como uma pessoa do ‘bem’ e justa. Vemos as consequências da história narrada na imagem de flash-forward no início do filme, e também uma vitória tendo detido certos políticos corruptos e tendo a oportunidade de discursar no plenário. Isso é igualmente evidenciado no fim do filme quando Nascimento explica que “por causa do meu discurso, teve filho da puta que foi para a vala muito antes do que eu esperava. Foi a maior queima de arquivos da história do Rio de Janeiro.” Nascimento nitidamente se invoca como herói da história e discretamente reforça essa esta ideia sobre o espectador durante todo o filme.
A voz do narrador (Capitão Nascimento) é isolada, autoritária, verdadeira, reveladora, e além de tudo – nos comove. É importante analisar sua função porque é ela quem cria a história. Portanto, as imagens exibidas na tela, ou melhor, o filme é apenas uma manifestação de suas palavras.
Últimas Reflexões
No final do filme, esses elementos são visivelmente presentes quando Nascimento explica que apesar das suas ações heróicas em expô-lo, “o sistema continuava de pé.” Ele invoca uma metáfora para que possamos refletir sobre a gravidade da situação, pois “o sistema entrega a mão para salvar o braço.” Ademais, o narrador tenta revelar-nos a sua verdade, todavia nos entregando uma representação da situação de corrupção real. Ele explica que “o sistema se reorganiza, articula novos interesses, cria novas lideranças. Enquanto as condições da existência do sistema estiverem aí, ele vai existir.” Similar ao filme de Tropa de Elite: O Inimigo Agora É Outro, o filme de Vidas Secas (1963) como comenta Glauber Rocha, cria uma perspectiva para estimular um sentimento profundo mas não nos oferece uma solução. (Rocha, 1965, p. 2) Nascimento acaba narrando, articulando que “para mudar as coisas, vai demorar muito tempo. O sistema é foda. Ainda vai morrer muito inocente.” Igualmente na ‘retomada’, como explica Piers Armstrong, o cinema tem a intenção de nos apresentar a situação real pois integra aspectos de documentário, mas sem solução para que possamos tomar ação.” (Armstrong, 2009, p. 88) Dessa forma, ele é honesto até o fim ao expor não somente o problema, mas também afirmando a circunstância não favorável. Para concluir, o narrador-personagem Nascimento em Tropa de Elite: O Inimigo Agora É Outro, evidencia possuir a verdade completa. Por esta razão, como narrador ele também apresenta elementos do documentário e consequentemente tem a habilidade e o poder de impor sua própria opinião ao espectador. Ao examinar essas questões, deduzimos que o narrador é fundamental, mas que ele influencia o público guiando-o ao longo do filme. Consequentemente, Nascimento possui uma autoridade ao contar uma história, ou melhor, uma verdade que ele deseja que aceitemos.Essa análise também leva em conta que Nascimento expõe elementos que refletem autenticidade e melhor explicam a situação de corrupção atual que se espalha por várias áreas do governo brasileiro. Porém, não podemos responder concretamente a essa pergunta pois o filme é de fato ficcional e a verdade manifestada é apenas uma verdade para o narrador-personagem, Roberto Nascimento. Por esta razão, o narrador é um elemento crucial que nos oferece muita informação nem sempre exibida nas imagens. Isso rende ao narrador a capacidade de nos influenciar já que suas palavras expõem diretamente sua opinião, e como nos documentários, relata os fatos. A voz do narrador é isolada, autoritária, verdadeira, reveladora, e além de tudo – nos comove. É importante analisar sua função porque é ela quem cria a história. Portanto, as imagens exibidas na tela, ou melhor, o filme é apenas uma manifestação de suas palavras.
Bibliografia
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